Obrigada pela visita, obrigada por ter achado engraçado, interessante ou legal, obrigada pelo comentário, apareça sempre!!!!

"Toda unanimidade é burra." Nelson Rodrigues
Obs.: mas nem todo ceticismo é inteligente.

Páginas

sábado, 3 de julho de 2010

Um pouco antes do inferno

por Fausto Wolff
Amigo e mestre Senhor Emannoel, sei que nutre especial carinho pela Terra, este planeta onde, afinal, nasceu seu filho. Deste-lhe um presente e ela ainda não descobriu o que é. Estou aqui há 600 anos, ou seja, três dos nossos bórios, e confesso que ainda não a entendi. Todos os habitantes dizem adorá-lo, mas nada fazem para demonstrar esse amor quando se encontram diante do Senhor em suas mais variadas formas. Dizem que provam seu amor construindo templos majestosos em sua homenagem com o dinheiro do pobre.

A terra tem 6 milhões de miseráveis subumanos, animais sarnentos que, quando tentam se revoltar, são massacrados e ou cooptados pelo COISO, que transformou o planeta numa gigantesca corporação, onde tudo está à venda; da alma às cuecas samba-canção. Diz a seus lacaios que o senhor é seu sócio quando ele mesmo é o voraz comedor de dinheiro.
A classe média vive alienada, limita-se a sobreviver sonhando com coisas supérfluas, como o carro do ano. Existe 5% da população mundial que explora os outros, não os deixando pensar. Nesse sentido, tem o auxílio da imprensa e de máquinas chamadas computador e TV, que confundem informação com cultura. Qualquer tentativa de revolução era reprimida violentamente, mas o poder logo verificou que os inconfidentes apenas queiram um osso da mesa dos patrões. Eventualmente, quando vêem que o povo pode ameaçá-los, dão um golpe de Estado e só se volta a falar em democracia algumas década depois, quando já não há cultura e ninguém sabe mais o significado das palavras.
A grande imprensa, TV, cibernética, corporações bancárias gigantescas, Forcas Armadas, universidades, donos de terra, todos se unem ao menor sinal de inconfidência. Quando há alguma falha no sistema e um pobre enriquece, logo dá as costas às suas origens. E lembram do Senhor só quando tentam escapar do destino que eles mesmos traçaram. Para eles, o Senhor é sócio do mercado. Precisava ver riquíssimas cortesãs exibindo colares de ouro e brilhantes com sua imagem na cruz
A maioria dos brancos despreza os pretos, mas passa horas sob bronzeadores. Eles têm leis, mas pagam fortunas a advogados para quebrá-las. Um homem que mata outro é condenado à morte, mas, se matar muitos no campo de batalha, é considerado um herói. Acreditam que Cristo nasceu de uma virgem e o comem simbolicamente em estranhos rituais numa língua morta. A mulher que trai o marido é desprezada, mas o homem que tem muitas amantes é admirado.
Os homens adoram tirar a virgindade das mulheres, mas, se algum homem tirar a virgindade da filha deles, são capazes de matar. Os homens usam um pedaço de pano no pescoço que aparentemente não serve para nada. As mulheres equilibram-se sobre tacos, furam as orelhas, besuntam os lábios e sangram uma vez por mês. Ambos aspiram rolinhos de papel cheios de cocaína mesmo sabendo que isso os conduzirá à morte.
Quando um pobre rouba um pão, é chamado de ladrão. Quando um rico rouba dinheiro que poderia acabar com a fome no mundo, é chamado de esperto. Dizem que a vida após a morte é tão boa que a chamam de céu, mas ninguém quer ir para lá. Os que se suicidam, porém, não podem ir para o céu. Só comem animais com cornos, como vacas e cabritos, mas evitam animais sem cornos, como burros e cavalos. Consideram normal um velho casar-se com uma jovem, mas ridicularizam a velha que se casa com um jovem. Acreditam na honestidade de políticos que gastam dez vezes na campanha o que receberão por quatro anos de salário. Chamam a Câmara e o Senado de Casa do Povo, mas só colocam lá dentro representantes da elite. Toleram o álcool, e o tabaco, mas proíbem outras drogas, que, por serem proibidas, são as mais usadas. Recompensam com carros, jóias e belos vestidos as mulheres que não fazem nada e dão um salário que mal dá para viver para as mulheres que trabalham. Consideram a prostituição uma praga social, mas vêem com naturalidade os clientes das prostitutas. A prostituição infantil e as drogas legais são incentivadas em programas de televisão.
Dizem que o homem é a obra-prima da natureza, mas tratam seus gatos e cachorros melhor do que seus empregados. Declaram guerra a outros países, mas mandam apenas as mais jovens, que jamais pensaram em declarar guerra a ninguém. Consideram o ouro o metal mais precioso do seu mundo, quando é exatamente aquele que não tem a menor utilidade. Gostam de ver mulheres nuas, mas as obrigam a andar vestidas. Fazem de tudo para conquistar a mulher do próximo, mas quando é o próximo que conquista a deles, transformam-se em assassinos. Educam os pobres para a violência e quando eles se tomam violentos, querem matá-los. Induzem homens e mulheres a comprar o que não podem e quando eles compram e não pagam, afastam-nos da convivência social.
São seres inferiores que receberam o paraíso e o transformaram num supermercado, assim como transformaram a arte em negocismo. À sua pergunta se devemos destruí-los agora, diria que não. Eles colocam tanta destruição no ato de existir que logo estarão mortos. Poupe as crianças, Senhor, pois são elas as que mais sofrem e nem sabem o porquê.
Espero que o Senhor concorde que minha missão entre esses idiotas acabou e compreenda que estou ansioso para executar nova tarefa num planeta mais avançado.

Fausto Wolff (8 de julho de 1940 - 5 de setembro de 2008)
Extraído do Caderno B do Jornal do Brasil, junho de 2008